domingo, 7 de fevereiro de 2016

Podem os livros fazer-nos mal?

Quando das convulsões de Abril de 1974, o meu tio materno foi para as Américas, mas não para o Brasil, para os EUA, onde grande parte dos seus cunhados (irmãos e irmãs da minha tia) já se encontravam, fruto do conhecido êxodo açoreano.
Os meus avôs foram aos EUA, visitar a família, às compras, ao médico... O meu avô vinha sempre deslumbrado. O meu avô acompanhava a política norte-americana com o mesmo fervor com que nós acompanhamos o Obama, a Clinton, o Sanders ou mesmo o Trump. O meu avô só tinha coisas boas a dizer da América, do trabalho do filho e da nora, professores universitários, dos netos, em excelentes escolas, da organização da sociedade, dos arranha-céus, do primeiro mundo!
Todo este elogio deixava-nos desconfortáveis. Os netos da América eram melhores do que nós... Era uma festa quando os meus primos chegavam, para passar o Verão na praia, na quinta ou no pinhal. Éramos sete, éramos aventureiros, éramos os maiores! Mas, a verdade, é que quando se iam embora e o meu avô começava a suspirar de saudades e a comparar-nos com eles – "comportem-se como os vossos primos!", mas eles implicavam tanto como nós, só que o avô não via...

De repente, a América parecia-nos uma porcaria! Também à minha mãe a América lhe fazia comichão (talvez pela mesma razão que a nós) e as conversas com o pai terminavam invariavelmente da mesma maneira: "A América é um país de emigrantes que foram expulsos dos seus países, de extremistas religiosos, de loucos."

Lembro-me muitas vezes desta ideia da minha mãe quando leio as notícias dos tiroteios nas escolas e nas universidades, quando vejo a defesa acérrima pelo porte de armas, etc. E lembrei-me quando lia o texto da Isabel Lucas, no PÚBLICO, sobre estudantes universitários norte-americanos que consideram que a literatura lhes pode fazer mal.

É o políticamente correcto em todo o seu esplendor. Não podemos ser expostos ao rapto, à violação, à violência doméstica, ao assassínio, à morte na literatura, mas estas podem entrar-nos pelos olhos adentro nos jornais, nas televisões ou na Internet. Custa-nos mais o rapto de Europa que as migrações forçadas de refugiados.
Não podemos levar um banho de realidade quando somos crianças. Como aqueles pais que compram os livros das histórias onde ninguém morre no fim, onde não há castigos sanguinários, onde todos são muito bons e felizes.

A literatura oral ou escrita – quem não se lembra das histórias de terror contadas numa noite fria num acampamento; ou, o que são os contos de Hans Christian Andersen como o da menina dos fósforos, etc  – serve para isso mesmo, para aprendermos a combater o medo, para compreendermos que o mal existe, para o conseguirmos identificar, para crescermos.

Quando estamos a escrever o Olimpvs.net e seleccionamos as histórias da mitologia ou dos heróis da Grécia Antiga para contarmos aos nossos leitores, por vezes, também temos essa preocupação: ui, vamos impressioná-los com uma coisa horrível... Mas, a vida é mesmo assim, as coisas más existem e estão aí, ao virar da esquina. Como as boas! Porque a literatura é feita de vida e vida é o que queremos para os nossos filhos... e para os tontos dos estudantes americanos, vá...
BW

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