sábado, 20 de outubro de 2012

António Manuel Pina e Fernando Pessoa, o fingimento poético

"Eterna  criança,  o  homem  é  naturalmente  atraído  pelo  carácter
fundamentalmente lúdico que anima todas as formas de arte, pelos jogos de
palavras, pelo misterioso poder que têm as palavras, não só para designar o
mundo, mas também para criar o mundo.
De facto, a literatura é, sobretudo,
uma arte de fazer de conta; é, como Blanchot diz, ilusão; ou fingimento,
como,  por  sua  vez,  diz  Pessoa.  Quando  lemos  um  livro,  suspendemos  a
incredulidade. À porta de qualquer obra literária está sempre a inscrição:
“Para aqui entrares, tens que fazer de conta que acreditas”.

O  poeta  [a  poesia  é  o  campo  de  observação  por  excelência  da
literatura pois a poesia é, talvez, literatura em estado puro] o poeta, dizia
eu, escreve, ou faz de conta, com a mesma seriedade com que uma criança
brinca. As fronteiras teóricas entre literatura e verdade, entre Dichtung e
Wharheit, são,  como  nos  jogos  infantis,  hesitantes  e  imprecisas.  Para  os
românticos  [e  românticos,  ou  seus  herdeiros,  todos  nós  somos,  ou  ainda
menos] a dor é a mãe de toda a verdadeira poesia. Mas a dor e o sofrimento
sinceros, isto é, sem fingimento, são a mãe [e o pai, e a família toda] da
maior  parte  da  má  poesia  que  se  escreve.  Muita  da  grande  poesia  pode
ter nascido da dor, mas o que a autonomiza da dor e a diferencia do mero
espasmo doloroso é o fingimento, a capacidade de o poeta fingir “a dor que
deveras sente” tornando-a poeticamente verdadeira. A poesia é forma, e
essa é a sua verdade. Se a dor do poeta que eventualmente terá gerado o
poema é “verdadeira” ou “falsa”, a sua verdade por assim dizer “vivida”, é
assunto, como diz Jacobson, com interesse apenas para a Medicina Legal. (...)
Na poesia, as palavras e as suas relações são as formas que os nossos
sentimentos ou a memória deles tomam. Com elas, o poeta, como a criança
brincando, cria, escrevendo, uma verdade outra, tão ou mais verdadeira.
Uma verdade autónoma, cuja autenticidade não depende da verdade ou  

da não-verdade do sentimento [e quem diz sentimento diz pensamento ou
mera impressão ou emoção] que eventualmente lhe terá estado na origem. "


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