quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Prémio Nobel da Literatura

O Prémio Nobel da Literatura 2009 foi atribuído à escritora alemã de origem romena Herta Müller, de 56 anos.
Com uma obra que vai da poesia ao romance, tem traduzidos em Portugal dois livros: O homem é um grande faisão sobre a terra, edições Cotovia, e A terra das ameixas verdes, publicado pela Difel.
Está também traduzido para português, no Brasil, o romance O Compromisso.
Aqui fica um excerto

"As roupas de Paul no assoalho. No espelho da porta do armário aparecia o dia de hoje, e neste dia estou convocada. Então me levantei, pé direito primeiro no chão, como sempre que sou convocada. Não sei se acredito nisso, mas mal não faz.Eu gostaria de saber se com outras pessoas o cérebro é responsável pela razão e pela felicidade. Comigo, o cérebro consegue apenas formar uma pequena felicidade. Para formar uma vida, não basta. Pelo menos não para formar a minha vida. Já me ajeitei com a felicidade que tenho, embora Paul diga que não é felicidade. A cada dois dias eu digo: Estou ótima.O rosto de Paul, quieto e tranqüilo à minha frente, me encara admirado como se não importasse que temos um ao outro. Ele diz: Você está ótima porque esqueceu o que isso significa para outras pessoas. Talvez outras pessoas se refiram à vida toda, ao dizer: Estou ótimo. Eu falo apenas da minha felicidade. Paul sabe que não me ajeitei com a vida, e não quero dizer simplesmente que ainda não, que é só uma questão de tempo. Olhe para nós, diz Paul, e pare de falar em felicidade. A luz no banheiro projetava um rosto no espelho. Foi tão depressa como um punhado de farinha voa até uma vidraça. Então o rosto tornou-se uma imagem com rugas de sapo ali onde ficam os olhos, e se parecia comigo. A água escorreu quente sobre minhas mãos, meu rosto estava frio. Para mim não é novidade, ao escovar os dentes, que a pasta saia espumando de meus olhos. Sinto náusea, cuspo e paro. Desde quando passei a ser convocada separo a vida da felicidade. Quando vou ao interrogatório, tenho de deixar a felicidade em casa. Deixo-a no rosto de Paul, em torno de seus olhos, de sua boca, em sua barba por fazer. Se a gente pudesse enxergar isso, o rosto de Paul estaria recoberto por algo transparente. Sempre que tenho de ir preferiria ficar em casa, como fica o medo que não posso remover de Paul. Como a felicidade que deixo ali quando estou fora. Ele não sabe, nem suportaria saber, que minha felicidade depende do medo dele. Mas ele sabe o que qualquer um vê, que sempre que sou convocada visto a blusa verde e como uma noz. A blusa herdei de Lili, mas o nome dela vem de mim: A blusa que cresce. Se eu levar a felicidade comigo, ficarei com os nervos fracos demais. Albu diz: Para que ficar nervosa, nós estamos apenas começando.Eu nem fico nervosa, mas todos os meus nervos ressoam como o bonde que passa na rua. Dizem que, em jejum, noz é bom para os nervos e o raciocínio. Qualquer criança sabe disso, mas eu tinha esquecido. Isso não me ocorreu porque sou convocada tantas vezes, foi apenas por acaso. Hoje eu devia estar com Albu às dez em ponto, e às sete e meia já estava pronta para sair. O trajeto não dura mais do que uma hora e meia. Tiro duas horas e, se chego cedo demais, fico vagando pelas redondezas. Nunca cheguei tarde, e imagino que ali não se tolere nenhum relaxamento.Acabei comendo a noz porque às sete e meia já estava pronta. Antes também era sempre assim quando eu era convocada, mas nessa manhã havia uma noz na mesa da cozinha. Paul a encontrara no dia anterior no elevador e a metera no bolso porque não se deixa uma noz assim. Era a primeira do ano, ainda tinha fiapos úmidos da casca verde grudados. Sopesei-a na mão, era leve demais para ser uma noz nova, como se estivesse oca. Não encontrei martelo, então a abri com a pedra que antes estava no vestíbulo, mas agora fica num canto da cozinha. A semente da noz estava solta. Tinha gosto de nata azeda. Nesse dia o interrogatório foi mais breve, não fiquei nervosa e quando estava de volta na rua pensei: Foi graças àquela noz. "

Tradução: Lya Luft
Ana Soares

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